28 abril 2006

O chefe nigeriano II

Estávamos à porta do escritório dele, à espera que acabasse a reunião que estava a ter para nos receber.

Viu-nos pela janela e pediu que entrássemos, sem mandar sair quem já lá estava. "Levanta-te e deixa sentar os senhores" gritou ele para o jovem em uniforme amarelo, antes de sorrir ridículo para nós com um "estejam à vontade, por favor".

O gestor explicou que o jovem era um novo chefe de turno, contratado havia três meses e por um período experimental de seis meses. A meio desse período, ou seja, naquele dia, ele era avaliado. "Sim, porque nós aqui levamos a gestão dos nossos recursos humanos a sério, e as pessoas são o nosso maior activo", disse, no meio de outras frases feitas e enquanto sorria para nós.

Voltou-se rapidamente para o novo chefe de turno e gritou-lhe o que vinha escrito no relatório: "dizem que não mostras ownership no trabalho". Arremessou que "nesta empresa é preciso trabalhar com ownership, isto não é a brincar", e rematou com outro grito "tens de mostrar mais ownership", que estremeceu o pobre rapaz, que tremia de medo por estar a ser envergonhado em frente a homem branco, e vindo da sede internacional, logo nos primeiros meses de trabalho. "Toma lá um papel e uma esferográfica e escreve o que é que vais fazer para melhorar nos próximos três meses".

Enquanto o rapaz tentava controlar os nervos para poder escrever, o chefe sorriu bajulando para nós, explicando-nos "que aqui não se brinca, eu sei apertar com esta gente, é preciso pô-los a trabalhar, é necessário motivá-los constantemente". O rapaz a meu lado continuava a tremer, e o chefe gritou-lhe novamente "escreve lá isso, que tenho mais que fazer", arrancando-lhe a folha das mãos. "Vamos lá ver o que é que escreveste: vou mostrar mais ownership". Sorrindo para nós dispensou o rapaz com um "Muito bem! Agora vai lá trabalhar".

Depois do novo chefe de turno ter saído ainda rematou orgulhoso "eu sei comandar esta gente".

27 abril 2006

O chefe nigeriano I

"Eu não sou o vosso chefe. Sou o vosso líder."

Dito enquanto consertava em cima da mesa a fotografia dele com o director internacional...

26 abril 2006

A revolução e as putas

O alemão velho que está também alojado na fábrica diz que ainda se lembra de estar em Lisboa no dia da revolução. Diz que estava num barco como mecânico, que era Sábado e que tinham decidido sair à baixa para fazer compras. Que não viu tanques, que não viu armas, que não viu disparos. Apenas muita gente nas ruas em protesto.

É alto, feio, tem uma barriga enorme e anda sempre de fato-de-macaco com alças compridas. Faltam-lhe todos os dentes da frente. Bebe cerveja com voracidade, e no outro dia em que o inventário de cerveja na fábrica acabou, ele andou insuportável. Nunca pensei encontrar ninguém que fosse tão bom modelo dos nossos preconceitos nacionais. Não sabia que existiam verdadeiramente.

Ontem trouxe uma puta para dormir com ele na residência da fábrica.

Foi-se embora hoje à tarde. Voltará para o ano que vem. Volta sempre. Desde há 17 anos.

21 abril 2006

Falta, muita falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar de beber à malta
O que faz falta

Zeca Afonso [Adaptado]

Sexta-feira: bora lá, bora lá. Fresquinhas à espera no frigorífico!

Será que é demasiado superficial sentir que o que mais se quer neste momento é uma bela cerveja?

Pedaço

Vá lá, um pedaço de colorido para tornar isto mais suportável!

Compreender

Hoje acusaram-me de não compreender a cultura local.

E não compreendo. Claro que não compreendo. Como é que poderia compreender se estou aqui apenas há três meses?

Mas será necessário conhecer a cultura de um país para concluir que gritar ordens não é a mellhor forma de motivar pessoas?

Haverá país ou cultura no mundo onde as pessoas só fazem algo de positivo quando são ordenadas aos gritos?

19 abril 2006

Devemos ser os mal-amados

Se estás em África

Se estás numa sociedade constantemente à beira duma guerra civil

Se estás num complexo fabril donde não podes sair por razões de segurança

Se quando te arriscas a sair estás envolto em lixo

Se vês corpos humanos mortos na berma da estrada que ninguém se preocupa em enterrar

Se vais à praia e vês gente a cagar na areia

Se vais ao cinema e pagas mais do que em Londres

Se não tens acesso a leite fresco ou a leite UHT

Se encontras formigas no leite em pó que te resta

Se comes espargete à bolonhesa todos os dias porque o cozinheiro pouco mais sabe fazer

Se tens de lavar os dentes com água engarrafada

Se encontras cagadelas de lagarto nos teus lençóis à noite

Se todos os dias aparecem novas picadelas de mosquito no teu corpo

Se tens uma missão mal definida

Se tens de trabalhar com um suposto especialista em desenho técnico que não sabe o que é um rato de computador

Se passas o dia numa linha de produção que te enche de gordura desde a ponta dos cabelos à unha do dedão do pé

Se estás nesta situação, não vejas os episódios da Twilight Zone nas sextas à noite, porque podes correr o risco de te identificares com algumas frazes como "devemos ser os mal-amados"...

17 abril 2006

Tributo à Anna

Porque algumas pessoas são incapazes de se esquecer de nós!

12 abril 2006

Pat's Club

Para esquecer as dificuldades, foi desesperados que deixámos o complexo num Sábado à noite. Em tal necessidade de ver algo diferente, não há aviso de perigo que nos meta medo. O Patrick até se atreveu a conduzir ele próprio! E afinal, havia que beber uns copos em honra do pobre do Faisal que estava carregado de malária e que fora enviado de volta para o Paquistão por uns dias!

O jipe queixou-se, voltou a gemer, mas à terceira insistência lá acabou por assentar na areia do passeio por calcetar, mesmo em frente do Pat's club, no centro de Lagos. A entrada estava repleta de raparigas jovens de olhares provocantes. Perguntei ao François se eram putas, mas ele explicou-me que "por cá elas só podem entrar acompanhadas de homens", coisa que estranhei, vindo eu das filas nocturas de Lisboa.

Porta da frente transposta, atravessámos o pátio que ainda estava vazio, contornámos a pista de dança quadrangular, e o Paulo insistiu que abancássemos em frente ao televisor que emitia em directo o mais clássico dos jogos espanhois. Só que, partida do destino, por debaixo do televisor, e, logo, mesmo em frente a nós, estava o balcão. O balcão não era problema, mas o mulherão que estava escostado a ele criava um verdadeiro dilema para o Paulo: olhar para o jogo ou para ela. No mesmo momento em que o Ronaldinho fez uma finta apertada, a miúda inclinou o decote para a frente e o Paulo teve de contorcer os olhos para seguir os três esféricos. Temi mesmo que o homem ficasse com a retina desequilibrada por tanto malabarismo de olhar. Ainda bem que nunca fui adepto fervoroso de futebol: para mim a decisão era clara e virei-me para pista de dança que estava repleta de mulheres que tais. Mas nada de ser vulgar mirone, e recolhi-me por detrás duma fila de mesas, essas sim, repletas de verdadeiros e vulgares mirones. Que conste em acta que não observei os vultos na pista de dança para ver as negrinhas a mover na perfeição as curvas sublimes dos seus corpos e para ficar de boca aberta. Nada disso, nunca, "lá agora", eu não sou mirone, eu estava, isso sim, a ... a ... estava a efectuar um estudo sociológico meticuloso por forma a entender melhor a cultura e os hábitos nigerianos, conhecimento que muito me poderia ajudar a lidar melhor com as pessoas no trabalho. Para além de constar em acta, que conste também na minha avaliação no final do projecto: para além de levar o meu esforço para áreas nunca exploradas neste contexto, eu estava a trabalhar até às três da manhã. Num Sábado!

A certa altura alguns tipos das mesas da frente (os mirones, esse tipos) decidiram juntar-se à festa da pista, e foi desta que tive pena que o jogo já tivesse acabado: sempre é melhor ver o Real a sofrer do que sofrermos a ver cinquentões a tentar provar que ainda são jovens, abanando os braços e agitando a barriga desajeitadamente em desespero para acompanhá-las. Sofrimento maior é vê-los a ensaiar seduções a beldades de vinte anos. "E a consegui-lo!".

Hã? Disseste o quê, Paulo? A consegui-lo? Espera, isso é impossivel. Nem na Twilight Zone! O François, experimentado de quatro anos de observação sociológica na Nigéria , explicou: "putas profissionais não o são, mas namoricos com brancos ricos que não têm onde gastar o dinheiro são fartura para carteiras vazias".

A certa altura diminuiram as luzes, e como já só conseguiamos distinguir as peles brancas enrugadas e bochechudas, voltamos para casa.