25 março 2006

Apenas até à próxima manhã

Há uma vida lá fora, eu sei que sim. Eu lembro-me que sim quando ouço os ritmos acelerados dos altifalantes que do outro lado do muro se agitam ao fim do dia para a celebração religiosa. Diz quem conhece, que lá fora não gostam de mirones, mas não era isso que eu queria ser. No entanto sigo como me indicam o caminho que não é naturalmente meu para a casa de hóspedes onde jantarei depois de treze horas ocupadas por trabalho, sem sair da fábrica, sem arriscar uma vida.

Sento-me à mesa e olho as caras ao meu redor, também elas ansiosas por outros lugares, mas que parecem não ouvir os ruidos que vêm lá de fora ou pelo menos não serem perturbadas por eles. À volta da mesa comprida cruzam-se conversas tépidas com palavras arrastadas ao redor de eficiências, as novas máquinas, os velhos procedimentos operativos. O cansaço elimina a paciência para aturar mais do que fiz durante todo o dia, e depois do fantástico ananás com que Duba, o cozinheiro, me delicia todas as noites, abandono a mesa. Experimento sentar-me um pouco na sala, mas sou afugentado pelos gritos de mais um qualquer reality show que alguém insiste em ver.

Recolho-me ao meu quarto, para apenas entregar-me à cama. Ainda espreito pelo canto dum olho mal fechado a antologia da poesia portuguesa, mas a esta hora não há alma para a receber.

De manhã faço-me ao caminho entre a casa de hóspedes e a fábrica. É nesses dez minutos de caminho que sinto que mais um dia passou sem que eu vivesse realmente. São esses dez minutos em que todo o peso da frustração cai sobre as rugas expressivas da minha face, e é quase ao chegar à porta do escritório que se formula a questão: "que faço eu aqui?". Mas passada a porta do escritório a agitação da eficiência, as novas máquinas e os velhos procedimentos operativos fazem-me esquecer a busca de resposta até à próxima manhã.

7 Comments:

At 26 março, 2006 04:34, Blogger Helena Romão said...

Coragem!
Olha que aqui na Europa chove lá para sul e faz frio cá para norte, também ninguém sai muito à rua... Quer dizer, em Paris sai-se para apanhar porrada ora da polícia, ora em frente à polícia.

Então e quando mudas de poiso outra vez? Tu nunca costumas ficar muito tempo...

Um beijinho!

 
At 28 março, 2006 16:43, Blogger Eduardo da Fonseca Joaquim said...

Pois, imagina lá tu que foi exactamente quando me mandaram para a Nigéria que me disseram que desta vez era por mais tempo. Vou estar por aqui até Junho...

 
At 29 março, 2006 16:46, Blogger ana said...

camarada! isso é um desafio enorme. chamar-te-ia sísifo.

o meu irmão teve uma experiência semelhante, que foi viver num navio durante meses seguidos, no meio do mar, obrigado a conviver com as mesmas pessoas meses a fio. felizmente tinha portos onde saía de quando em quando. tu tens a net, que é um ponto de fuga tb, embora seja limitado e canse.

mas se conseguires fazer vingar a tua genica aí, penso que estás pronto para gostar da vida em quase qualquer lado.

é estoico, e não te invejo, mas daqui vai a minha solidariedade.

 
At 29 março, 2006 19:12, Anonymous Anónimo said...

rugas de expressão?
a caminho do trabalho?

imagina tu, eu a caminho do camarejo pela estrada dos machados tiodas as manhãs...

ah
pois é!!!

valha-me o cd de samba que ando a ouvir de manha no caminho para ir acordando bem disposta...

beijinhos, hás-de ter muitas histórias para contar aso teus netos. sim, porque sobrinhos...

 
At 30 março, 2006 11:17, Blogger Eduardo da Fonseca Joaquim said...

Pois Ana, a net não tem propriamente a agitação de um porto (cadé os bares pestilentos, as putas desdentadas, as esquinas obscuras, o cheiro a peixe podre?).

(m)ana, CDs? Leitor de CD? E isso o que é?

 
At 30 março, 2006 11:25, Blogger ana said...

cadé os bares pestilentos, as putas desdentadas, as esquinas obscuras, o cheiro a peixe podre?

vai ao google! ;-b

 
At 30 março, 2006 14:57, Blogger Eduardo da Fonseca Joaquim said...

Ana, a parede de fogo não deixa. Ah, se ela deixasse...

 

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