11 fevereiro 2006

Espanto esgotado

Saímos então do complexo fabril. Havia já uma semana que estávamos na Nigéria, e esta era a primeira vez que nos atreviamos a pôr o pé de fora.

Marcámos com antecedência, que expedições desta envergadura têm de se preparar antempadamente e com todo o cuidado: pedir a um colega nigeriano que nos troque no mercado negro os nossos dólares pela (como o Paulo lhe chama) "Mickey Mouse currency" deste país; requisitar condutor, que as ruas de Lagos são apenas para duros do volante; e pedir escolta policial. Também a nossa imaginação se alargou quando nos falaram em "escolta policial", mas no dia da aventura tivemos apenas direito a um polícia desarmado: "Bandidos? Não, eu vou convosco só para vos proteger da polícia; não se preocupem que eu tenho os meus contactos; eles não nos chateiam, conheço-os de ginjeira".

Atravessámos o portão da fábrica deixando para trás os edifícios bem pintados e limpos, rodeados de hectares de relva aparada e viçosa, espalhada por uma paisagem composta aqui e ali de árvores coloridas de flores vermelhas; deixando para trás a piscina rodeada de arbustos podados, o campo de ténis limpo, as casas rasteiras para os hóspedes e as salas iluminadas por grandes janelas corridas que se abrem sobre todo o jardim.

Atravessámos o portão da fábrica para enfrentar a estrada poeirenta, dividida a meio por lixo, entremeado por gente tísica e suja que entre as duas faixas raspa as embalagens abandonadas, come os restos dos restos, amamenta os filhos e vê passar o trânsito infernal. Terão já perdido a esperança para levantarem a mão pedinte. Nas bermas barracas instáveis de madeira e lata tentam vender alguma carne crua espalhada em cima de calhaus e coberta por velhos sacos de cimento vazios, ou produtos embalados debotados pelo sol, deformados pelo tempo e bolorentos pela humidade. O motorista acelera, sempre sem parar, nem mesmo junto das inúmeras patrulhas que criam problemas aos locais: a nossa escolta cumpre a sua função.

Mais ou menos intensa, a paisagem do lado de lá do vidro do carro parece não mudar ao longo da eterna hora que tomamos para chegar ao centro da cidade. Agustin, o nosso motorista, vai comentanto a espaços os locais por onde vamos passando: parece orgulhoso por conduzir os senhores brancos, senhores dessa cor de pele que não se vê nas ruas. Não vimos um único branco em nenhuma das áreas por onde passámos. E no entanto sabemos que eles existem em Lagos, mas escondem-se por detrás dos vidros fumados dos seus carros de luxo ou na segurança das suas casas rodeadas de arame farpado. Agustin terá pensado que tal como eles, também nós não nos queremos juntar muito com outras cores, e terá sido talvez por isso que sugeriu que parássemos no novo centro comercial da cidade, provavelmente um dos poucos locais públicos onde as caras são mais pálidas que negras, num ambiente asséptico feito de produtos que são aqui mais caros do que na Europa.

Atravessámos várias áreas da cidade, mas sempre sem saír do carro, que assim exigiam as regras de segurança. Fora do carro as pessoas aproximava-se semi-famintas; o condutor pediu apenas que não usássemos máquinas fotográficas. Conseguimos ainda assim ter direito a uma paragem na praia da cidade, onde os putos mergulhavam na rebentação contaminada das ondas, pedintes leprosos recolhiam algumas notas velhas e alguém cagava ao longe na areia. A nossa chegada foi seguida pela dum grupo cujas túnicas inteiramente brancas ofuscavam o negrume das suas peles. Eram fieis duma religião cristã radical que esfregam com a água do mar o cérebro, fonte de todos os pecados a serem lavados.

No regresso ao carro espreitámos para uma bancada que parecia vender alguma espécie de alimento. Ao longe parecia tratar-se dalgum peixe demasiado frito e ressequido, mas com um olhar mais preciso indentificámos aquilo que era carne grelhada.

A partir dali o nosso espanto estava já demasiado cansado para notar fosse no que fosse. Será talvez por esse espanto demasido esgotado que os europeus por cá vivem já alheados desta realidade. A última coisa que senti antes de adormecer no aconchego dos solavancos do carro foi o fumo da queima do lixo.

11 Comments:

At 13 fevereiro, 2006 12:27, Anonymous Anónimo said...

só espero que os próprios nigerianos consigam viver tão alienados quanto possível dessa realidade, quanto mais não seja por não a verem como tão anormal como nós europeus a vemos, senão, como viveriam em ansiedade. O mundo é mesmo injusto e de facto, para o que é preciso mais sorte, é para nascer. Afinal, nascer homem branco num país escandinavo é mais improvável que ganhar a lotaria, e melhor também.

 
At 13 fevereiro, 2006 15:05, Anonymous Anónimo said...

ehhhh....
isso de viver alienado da realidade nacional da treta não deve ser lá muito difícil...

basta olhar aqui o recanto à beira mar plantado...

haja futebol, vinhaça, caldo verde e chouriço.
(só porque a minha educação não me deixa dizer p... e vinho verde...

 
At 13 fevereiro, 2006 18:27, Blogger Eduardo da Fonseca Joaquim said...

Ó Luísa, isto vendo bem as coisas, por aqui a malta vai morrendo de fome, atropelada, de doenças sem conto e de outras horrendas causas, mas muito do pessoal lá por cima também acaba por dar um tiro nos seus reais cornos com a depressão de ter sol apenas duas horas por dia!

Ó (m)ana, um choriço agora é que era, carago!

 
At 13 fevereiro, 2006 18:41, Anonymous Anónimo said...

Ayer estuve comiendo con un amigo ex-auditor, Dominik, que estuvo de viaje en Nigeria hace 3 años (creo que te lo presenté en Suiza). Me invitó a su casa y me mostró todas las fotos que trajo de allá, así que ya conozco la fábrica, el lugar donde vives y duermes, y también al gemelo de tu amiguito lagarto (finalmente cómo se llama??). Viendo el visitors house me pareció que era el set de televisión de la casa de Big Brother... hasta tienes alberca y cancha de tenis! Por lo menos vas a poder hacer ejercicio y dado que es prácticamente lo único que puedes hacer, seguramente regresarás hecho un Adonis... that is, unless you'd rather spend your time watching models on SkyTV.
Obviamente, también vi las fotos de Lagos, así que lo que nos cuentas aquí me quedó totalmente claro: es así. Miserable.
Pero también vi otras fotos de un mercado en la ciudad, donde se ven cosas espectaculares, sobre todo los vestidos de las mujeres y los turbantes y collares que llevan. También hay niños lindos, sonriendo con curiosidad a la cámara. Había puestos de frutas de brillantes colores y tiendas de artesanías africanas como cestos, cerámica negra, joyería, telas de algodón, y arte. Mucho arte.
Mi amigo tiene colgados dos cuadros en la sala de su casa con las figuras de unas bailarinas africanas con unos colores padrísimos.
En su computadora tenía otro file que decía "Cameroon"... that's where you have to go. Las fotos de los paisajes y la gente son estupendas, y eso sin contar los animales del safari en el que se fue: leones, elefantes, jirafas, antílopes... Y todo esto en el país vecino a Nigeria. Dominik dice que es muy fácil arreglar un viaje por allí, y que contrario a Nigeria, Camerún es bastante seguro.
Ya verás que tus próximas "escapadas" de la fábrica serán más agradables... Y claro que puedes tomar fotos!

 
At 13 fevereiro, 2006 18:52, Blogger Eduardo da Fonseca Joaquim said...

Bem, obrigado pela sugestão, Mini. Vou ver o que posso fazer...

 
At 13 fevereiro, 2006 21:26, Anonymous Anónimo said...

camarada, já o Herman José disse um dia, ele lá saberá porquê: o dinheiro não traz a felicidade,mas eu prefiro chorar ao volante de um Ferrari!
E a maioria dos escandinavos não se suicida em massa, mais se suicidam os Japoneses, de trabalho e-mai-não-sei-quê...
Voto a favor das fotos dos Camarões! :o)

 
At 13 fevereiro, 2006 22:59, Blogger rafaela teves said...

Acho que essa alienação toda, de certo modo, é positiva, para nós, homem branco, que não tem de que se queixar a não ser das contas ao fim do mês.
Aprende-se a dar valor a coisas muito diferentes...

A alienação por parte dos nigerianos, ou de angolanos, ou de finlandeses pobres, ou de qualquer pessoa que viva na miséria não passa de uma forma de sobrevivência.

Aposto que te vais sentir a pessoa mais rica quando saboreares esse chouriço com que tanto sonhas...

 
At 14 fevereiro, 2006 07:54, Blogger Eduardo da Fonseca Joaquim said...

Pronto, está combinado, fazemos todos uma festa a comer choriço com uma colónia de finlandeses emigrante nos Camarões!

 
At 14 fevereiro, 2006 13:18, Anonymous Anónimo said...

eu prefiro farinheira a chouriço, mas cá te espero com a broa... de milho claro! e o vinho tinto!

haja coragem para conhecer essas realidades e conseguir ser melhor, cada dia mais um bocadinho

 
At 14 fevereiro, 2006 19:04, Blogger Eduardo da Fonseca Joaquim said...

Levarei a sério o teu desafio. Ai de ti que não tenhas a farinheira a jeito!

 
At 14 fevereiro, 2006 23:12, Anonymous Anónimo said...

eu cá te espero.
com chouriço, não sei, que o gato comeu.
(colocaram-no a dieta, e ele lá se desenrascou!!!)

 

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