20 fevereiro 2006

Pior que bons

Já andava farto de ouvir falar dessa história dos cartoons da Dinamarca, e decidi pôr os pontos nos i's com o Paquistanês que temos cá connosco.

"Então mas que merda de berraria vem a ser esta?", atirei-lhe eu à cara, à volta duma cerveja. Uma e apenas uma, porque está visto que o gajo não bebe álcool.

Lá com ele (e com os amigos dele) estava tudo bem que criticassem tudo e que criticassem todos, excepto o profeta. Explicou-me ele que o respeito Maomé é a base intocável da civilização islâmica, e que, embora todas as disposições do Corão possam ser questionáveis e criticáveis, em Maomé ninguém toca.

E eu fiquei a pensar cá para mim (sim, é verdade que tive de pedir um pouco de ajuda à cerveja) que até é verdade que há quem questione o Corão, e é por isso que em diferentes países diferentes disposições se aplicam. Veja-se o caso radical da lei Sharia no Norte da Nigéria em contraste com o easy going da malta do Dubai. E é também verdade que enquanto estive no Paquistão vi muita gente questionar certas leis islâmicas, mas nunca a figura de Maomé.

Mas 'pera aí! como é que os gajos se acham no direito de exigir respeito cego por uma personagem? Mas que merda vem a ser esta? Já não posso dizer mal de quem me apetece? Olha que caralho, hã? Sim, porque isto a malta tem direito de dizer o que lhe vai na veneta: é um direito inegável. Pelo menos na Europa. Intocável! Isso, intocável tal como o Maomé.

Eh pá, mas se nós temos direito a uma coisa intocável, se calhar eles também têm... Então que fique cada um com a sua, e que não haja cá confusões: se eles não quiserem dizer mal do profeta, isso é lá com eles, que não o façam, mas nós que fiquemos cá com a nossa liberdade de expressão. Não queiram eles vir para cá impor-nos a preciosidade deles, que nós não andamos a tentar impor-lhes a nossa.

Oh diabo, mas se calhar andamos. Se calhar andamos mesmo com todas essas tentativas de democratizar o mundo árabe.

C'um catano, isto afinal eles querem ter uma preciosidade intocável, mas nós também; eles querem impingir-nos a preciosidade deles, mas nós também!

Porra pá, expliquem-me lá outra vez que são os maus e quem são os bons, porque a cerveja já não me dá mais ajuda.

Raios!

17 fevereiro 2006

Gripe aviária

Os primeiros sinais perante mim na Nigéria...

15 fevereiro 2006

Sua

Este é o Sami.
Esta é a sua Sun Tan Beach.
É sua porque foi nela que foi abandonado por pai e mãe.
É sua porque foi nela que a colónia das redondezas o recolheu.
É sua porque é portrás dela que está a casa de paliçada e folha de palmeira onde vive.
É sua porque deixa que ela lhe ensine o pouco que aprende sem ir à escola.
É sua porque é das suas palmeiras que recolhe o óleo que vende.
É sua porque é a ela que se entrega nos domingos pachorrentos.
É sua porque foi a única pessoa que encontrei no areal naquele dia.

11 fevereiro 2006

Espanto esgotado

Saímos então do complexo fabril. Havia já uma semana que estávamos na Nigéria, e esta era a primeira vez que nos atreviamos a pôr o pé de fora.

Marcámos com antecedência, que expedições desta envergadura têm de se preparar antempadamente e com todo o cuidado: pedir a um colega nigeriano que nos troque no mercado negro os nossos dólares pela (como o Paulo lhe chama) "Mickey Mouse currency" deste país; requisitar condutor, que as ruas de Lagos são apenas para duros do volante; e pedir escolta policial. Também a nossa imaginação se alargou quando nos falaram em "escolta policial", mas no dia da aventura tivemos apenas direito a um polícia desarmado: "Bandidos? Não, eu vou convosco só para vos proteger da polícia; não se preocupem que eu tenho os meus contactos; eles não nos chateiam, conheço-os de ginjeira".

Atravessámos o portão da fábrica deixando para trás os edifícios bem pintados e limpos, rodeados de hectares de relva aparada e viçosa, espalhada por uma paisagem composta aqui e ali de árvores coloridas de flores vermelhas; deixando para trás a piscina rodeada de arbustos podados, o campo de ténis limpo, as casas rasteiras para os hóspedes e as salas iluminadas por grandes janelas corridas que se abrem sobre todo o jardim.

Atravessámos o portão da fábrica para enfrentar a estrada poeirenta, dividida a meio por lixo, entremeado por gente tísica e suja que entre as duas faixas raspa as embalagens abandonadas, come os restos dos restos, amamenta os filhos e vê passar o trânsito infernal. Terão já perdido a esperança para levantarem a mão pedinte. Nas bermas barracas instáveis de madeira e lata tentam vender alguma carne crua espalhada em cima de calhaus e coberta por velhos sacos de cimento vazios, ou produtos embalados debotados pelo sol, deformados pelo tempo e bolorentos pela humidade. O motorista acelera, sempre sem parar, nem mesmo junto das inúmeras patrulhas que criam problemas aos locais: a nossa escolta cumpre a sua função.

Mais ou menos intensa, a paisagem do lado de lá do vidro do carro parece não mudar ao longo da eterna hora que tomamos para chegar ao centro da cidade. Agustin, o nosso motorista, vai comentanto a espaços os locais por onde vamos passando: parece orgulhoso por conduzir os senhores brancos, senhores dessa cor de pele que não se vê nas ruas. Não vimos um único branco em nenhuma das áreas por onde passámos. E no entanto sabemos que eles existem em Lagos, mas escondem-se por detrás dos vidros fumados dos seus carros de luxo ou na segurança das suas casas rodeadas de arame farpado. Agustin terá pensado que tal como eles, também nós não nos queremos juntar muito com outras cores, e terá sido talvez por isso que sugeriu que parássemos no novo centro comercial da cidade, provavelmente um dos poucos locais públicos onde as caras são mais pálidas que negras, num ambiente asséptico feito de produtos que são aqui mais caros do que na Europa.

Atravessámos várias áreas da cidade, mas sempre sem saír do carro, que assim exigiam as regras de segurança. Fora do carro as pessoas aproximava-se semi-famintas; o condutor pediu apenas que não usássemos máquinas fotográficas. Conseguimos ainda assim ter direito a uma paragem na praia da cidade, onde os putos mergulhavam na rebentação contaminada das ondas, pedintes leprosos recolhiam algumas notas velhas e alguém cagava ao longe na areia. A nossa chegada foi seguida pela dum grupo cujas túnicas inteiramente brancas ofuscavam o negrume das suas peles. Eram fieis duma religião cristã radical que esfregam com a água do mar o cérebro, fonte de todos os pecados a serem lavados.

No regresso ao carro espreitámos para uma bancada que parecia vender alguma espécie de alimento. Ao longe parecia tratar-se dalgum peixe demasiado frito e ressequido, mas com um olhar mais preciso indentificámos aquilo que era carne grelhada.

A partir dali o nosso espanto estava já demasiado cansado para notar fosse no que fosse. Será talvez por esse espanto demasido esgotado que os europeus por cá vivem já alheados desta realidade. A última coisa que senti antes de adormecer no aconchego dos solavancos do carro foi o fumo da queima do lixo.

09 fevereiro 2006

Relíquia

Esta é uma relíquia que guardo apenas para versão da portuguesa deste sítio.

De bom a melhor!

"THE H5N1 avian influenza has been detected in Africa for the first time, the World Organisation for Animal Health (OIE) said here yesterday, reporting an outbreak among poultry in northern Nigeria that has killed 40 000 birds.

According to the latest official toll compiled by the World Health Organisation (WHO), there have been 165 recorded human cases of H5N1 infection [worldwide], 88 of them mortal."
The Herald online

Qual será a próxima catástrofe a acontecer a este país? Aceitam-se estimativas, especulações, futurologia e bruxarias de todo o tipo.

06 fevereiro 2006

Charme nigeriano

O guia desaconselha qualquer aventura com uma máquina fotográfica fora das imediações da fábrica, e a política da empresa proíbe quase toda a tranferência de imagens de dentro das instalações. Ainda não decidi se quero perder a vida ou o emprego, mas entretanto conluí que tinha de me esforçar demasiado por encontrar sujeito para um domingo contemplativo. Abandonei então a contemplação passiva, e segui os rastos do meu mais recente amigo.

Anda sempre por aqui, ele e os seus irmãos, irmãs, primos, tias, primas, cunhados, avós, e as amigas. Oh, sim, as amigas, que eu diria que a época é de acasalamento e é vê-lo correr frenético atrás das pobres bichas.

Apanhei-o no sensor enquanto olhava matador uma fêmea antes do ataque. Que dizeis vós deste olhar? Quanto charme será este?

Preciso de lhe encontrar um nome. Alguém me ajuda?

04 fevereiro 2006

Que dizer de nós?

É noite de sexta-feira e enquanto eu vou passando os canais da televisão, o Paulo rumina batatas fritas de pacote moles e húmidas. Temos ambos menos de trinta anos, e é assim que passamos esta clausura a que nos entregaram. Afugentamos a frustração com tragos de cerveja nigeriana medíocre.

"Eh pá, deixa estar aí na FashionTV", pediu o Paulo. Eu acedi, mas ao fim de dois minutos protestei: "pois, as miúdas até são giras, mas isto é um bocado aborrecido", ao que ele convicto respondeu "sim, mas as miúdas são giras".

Passados cinco minutos já ele ressonava no sofá. Eu subi as escadas e deixei-me caír na cama: o cansaço duma semana passada na torre de mistura, assistida pela falta de permissão para abandonar o recinto, atirou-me cama adentro.

03 fevereiro 2006

Força Nigéria

O homem a meu lado mantinha uma expressão séria e tensa. Practicamente não mexia os músculos da cara, raramente fechava as pálpebras, e jamais desviava os olhos da televisão.

Perguntei-lhe o resultado do jogo, e respondeu-me um a zero, maquinalmente e sem mexer os lábios como um ventríloquo. A minha próxima pergunta parecia lógica: "quem é que está a ganhar?", mas ele quase se ofendeu com a pergunta, limitando-se a cuspir "a Nigéria está a perder". Uma resposta destas quase me desmotivou por completo e considerei seriamente a hipótese de pedir ao Paulo que voltássemos para o escritório. Afinal, tinhamos decido fazer uma pausa para ver o jogo com os operários da fábrica de modo a, logo desde os primeiros dias, estabelecer uma relação de proximidade e igualdade com eles. Pensámos que o jogo de futebol poderia ser um momento em que estivessem mais descontraídos e que pudessem por momentos esquecer a nossa condição de "enviados da sede", gerando assim uma empatia inconsciente connosco. E nós com eles, porque afinal teremos de trabalhar juntos durante os próximos cinco meses, e não queremos ter de aturar um mau ambiente de trabalho. Só que vistas as coisas, os nossos planos não se entavam a concretizar da melhor forma.

O Paulo insistiu mais. Falou com o tipo sentado à direita dele sobre os jogadores internacionais nigerianos que conhece, mas o tipo pouca atenção prestou. Virou-se para a esquerda e tentou fazer analogias com o futebol mexicano, mas eles nem pestanejaram. Já faltavam apenas quinze minutos para o final do jogo, e o Paulo sugeriu-me que fossemos embora, e deixássemos aquilo do estreitar de relações para mais tarde. Por alguma estranha razão, e indo mesmo contra o meu sentimento de cansaço que me impelia a sair dali, recusei e propus que ficássemos mais um pouco.

Passados trinta segundos, o lateral direito nigeriano consegue penetrar na defesa senegalesa pelo seu flanco, e cruzar rente à baliza. O guarda-redes dá uma sapatada incompleta para fora da pequena área, colocando a bola à inteira e real disposição do ponta-de-lança verde, que não podia fazer mais do que enviá-la para o fundo das malhas.

O homem a meu lado saltou da cadeira e gritou com tantas forças teve, bateu palmas de alegria e deu pulos de contentamento explosivo. Os restantes à nossa volta levantaram-se também numa algazara fenomenal, abraçaram-se e transformaram as frágeis mesas de madeira em sonoros tambores. Trinta segundos depois, sentaram-se todos instantaneamente e voltaram de novo à pose sizuda e impenetrável. Ainda nós não tinhamos tido tempo de reagir, e já eles se fechavam de novo em copas. Nem os nossos "ganda golo, hã?" os faziam regressar à descontracção. O Paulo quis outra vez voltar, mas agora já faltava pouco e aguentaríamos até ao final.

Ainda falava com o meu colega quando me apercebo do homem a meu lado de novo de pé, desta vez numa estranha dança que apenas poderei chamar de galinha, e a fazer mais barulho do que uma capoeira cheia delas. Quando voltei a cabeça para a televisão foi apenas a tempo de ver o final da repetição: a bola entrara de novo na baliza senegalesa. A festa exigia agora o dobro da energia, uma vez que significava vitória e não apenas um mísero empate.

O jogo acabou passados poucos minutos, e o pessoal voltou ordenado em fila indiana para as linhas de produção, num silêncio de sussurro, mas já sem aquela expressão sizuda e tensa de antes. Agora iam relaxados: já não tinham na face a concentração de assistir a um jogo, levavam apenas a leveza de ir trabalhar. Ao virar da esquina ao fundo do corredor a fila e o silêncio perturbaram-se: era um dos operadores que nos gritava ao longe "força Nigéria". Era o sinal de empatia que tinhamos tentado criar. Gritámos o mesmo de volta!