31 janeiro 2006

Prova de identidade

"Não tome uma placa com o logotipo da companhia como prova de identidade suficiente"
Avisos corporativos para a segurança à chegada ao aeroporto

Saímos do avião e sentimos de imediato a humidade e o calor misturados no ar. Atravessámos sem problemas o controlo de passaportes e esperámos em frente dum dos dois tapetes de malas que existem no Aeroporto Internacional de Lagos.

Atrás de nós reparámos numa balança grande de estilo industrial antigo, encabeçada ainda por uma roda enorme por onde se passeava uma agulha, desde os zero até aos duzentos e cinquenta quilos. Seria seguramente utilizada para pesar bagagens, mas eu e o Paulo tivemos de imediato a ideia de a utilizar para aferir a medida da nossa perda de saúde nesta expedição a África: pesarmo-nos-íamos à chegada para comparar com o mesmo valor aquando da saída, e verificar qual será o efeito da alimentação local, do calor, da humidade, dos mosquitos abundadntes, da malária, da água contaminada... O Paulo registou 81 kg e eu fiquei-me por uns 76,5 kg.

Esperámos então pelas bagagens: três tinhamos enviado, o mesmo número esperávamos recuperar. Três não é número grande, nem difícil de contar, mas se o tivermos de fazer ao mesmo tempo que contamos os cortes de electricidade que levam o tapete a parar, a tarefa torna-se mais dura. Foi apenas ao fim de mais de uma hora e duns nove cortes que por fim estávamos prontos a atravessar a última porta do aeroporto. Contas feitas: uma média de três cortes por mala!

Juraram-nos a pés juntos que estaria alguém de confiança à nossa espera no aeroporto, ao mesmo tempo que nos avisavam para a existência de falsos "anfitriões", bastante bem disfarçados, com o logotipo da empresa e até mesmo conhecedores dos nossos nomes. "Perguntem-lhe o nome, peçam-lhe a identificação, comparem com a fotografia que vos foi enviada", tinham-nos dito. Com tantos avisos, pensei mesmo em fazer-lhe um teste de ADN, mas o Paulo tinha deixado o micro-laboratório portátil no centro de investigação na Suíça. Assim, um cartão da empresa teve de bastar.

Se à saída do avião tinhamos sentido calor e humidade, agora era a doer: embora tal coisa possa parecer embaraçosa e até mesmo indecente para quem tenha imaginação demasiado larga, tenho de admitir que ao fim de trinta segundos não havia peça de roupa sobre mim que não estivesse molhada.

Olhámos em volta à procura dum carro que pudesse ser o nosso transporte, mas não vimos nada. O nosso anfitrião pareceu ler-nos o pensamento, e respondeu-nos que já iriam passar por ali para levar-nos. Três minutos depois fomos engolidos por um todo-o-terreno escoltado por uma outra viatura repleta de seguranças, e ambos arrancaram a grande velocidade.

Ao início avançávamos rapidamente e num slalom impressionante por entre carros, carritos, carrões, carrinhas, camionetas, camiões, gente a pé, de mota, de bicicleta, tudo aproximando-se no sentido Norte-Sul, mas também nos sentidos Sul-Norte, Oeste-Este, Este-Oeste, Norte-Este, Sul-Oeste, esquerda-direita, cima-baixo, baixo-chão, chão-chão, que daí não passarás e arreda mas é o cadáver para a berma que o trânsito tem de passar! E depois apareciam mais carros, carritos, carrões, carrinhas, camionetas, camiões, motas, bicicletas, todos eram permitidos desde que tivessem mais de vinte anos e menos de metade dos faróis a funcionar. A prioridade era dada àqueles que tivessem mais de cinco amolgadelas por centímetro quadrado: mesmo no meio de tamanha anarquia, o ser humano mantém o respeito pelos mais experimentados e mutilados!

Só que depois tudo parou, como se estivéssemos num jogo de realidade virtual e alguém tivesse carregado na tecla de pausa. Os carros, os carritos e os carrões continuavam à nossa volta; as carrinhas, as camionetas e os camiões também, mas tudo estava parado. Nem sequer as motas e as bicicletas se moviam, tal era a quantidade de chapa por metro quadrado. Só mesmo a gente a pé aproveitava para fazer negócio, vendendo fruta e pão por entre aquele tecido compacto.

O rádio do carro ia comentando o jogo de futebol entre o Egipto e a Costa do Marfim. Na verdade, menos que comentar, a voz parecia ter aceite o desafio de durante todo o tempo da partida não comunicar mais do que o resultado, mas sempre duma forma diferente: "o resultado é agora dois a um, isto é, dois para o Egipto e apenas um para a Costa do Marfim, o que faz com que os egípcios tenham um golo de vantagem, porque, claro está, há uma equipa que tem dois, enquanto a outra tem apenas um, um para uma nação, dois para a outra, e parece que entretanto o Egipto marcou, tornando o resultado agora em três a um, isto é, três para o Egipto e apenas um para a Costa do Marfim, o que faz com que os egípcios tenham dois golos de vantagem, porque, claro está, há uma equipa que tem três, enquanto a outra tem apenas um, um para uma nação, três para a outra...". Em suma, uma rádio verdadeiramente cultural que coloca a beleza da linguagem acima da emoção do golo!

Quem espera sempre alcança, e a pouco e pouco (mais hora, menos hora) lá fomos saíndo daquele novelo de lã emaranhado, até que o conductor deu uma guinada forte no volante e o todo-o-terreno seguiu por uma estrada sem asfalto, mas com crateras dignas de lua cheia. As crateras estavam lá, mas a lua não, condenando a noite à escuridão absoluta, interrompida aqui e ali por uma ou outra vela acesa nas bancas de vendedores instalados à beira da estrada. Vendedores que eram muitos ao início, que se foram tornando alguns um pouco mais tarde, para escassearem passados uns quilómetros. A esta altura o pouco que os faróis do carro em que seguíamos nos dava a ver era desolador: apenas algumas construções instáveis e miseravelmente sujas à beira da estrada, atacadas por todos os flancos por ora lama ora pó. E se aquele não era o verdadeiro motorista? E se aqueles que nos seguiam ainda no carro atrás de nós não eram os verdadeiros seguranças? Naquele sítio nada seria mais fácil do que sequestrarem-nos para pedir um resgaste chorudo a quem para este país nos enviou. Ou pior ainda, atacarem-nos, levarem todos os nossos pertences e deixarem-nos à mercê de mosquitos, malária, lagartos e maltrapilhos da pior espécie. O Paulo pareceu partilhar dos meus pensamentos, e perguntou ao motorista quanto tempo faltava para chegar a bom porto, ao que ele respondeu com uns preocupantes quarenta e cinco minutos. É que já estavamos na estrada à mais duma hora, e tinham-nos indicado um distância de apenas quarenta quilómetros! Olhámos um para o outro e encolhemos os ombros: não tinhamos trazido nenhuma arma, não sabíamos nada de artes marciais e não me pareceu que o canivete suíço que trazia na mala fosse ajudar muito em caso de problemas. Orações católicas também não serveriam de muito num país dominado por Allah. Limitámo-nos a esperar para ver.

Terão passado os tais quarenta e cinco minutos até que sentimos de novo o asfalto a rolar debaixo dos pneus. Com ele voltaram as luzes, os carros, os carritos, os carrões e toda a restante parafernália de transportes, e embora isso possa parecer absolutamente contraditório, a visão de toda esta anarquia vibrante tranquilizou-nos! Ao fim dum longo muro coberto de arame farpado, entrámos por um largo portão numa aldeia cujas cores não enganavam: o branco e o cinzento garantiam-nos que era este o bom porto.

30 janeiro 2006

Adeus meu amor

Não o disse, mas podia tê-lo feito antes de embarcar nesta quase eterna expedição na Nigéria.

A primeira vez que me disseram ao telefone que a minha próxima missão seria na Nigéria, eu sabia apenas que era em Àfrica. Portanto, eu estava contente por ter finalmente a oportunidade de explorar um pouco do que tinha lido como sendo um continente extremamente envolvente e encantador. Comecei de imediato a imaginar aventuras bestiais, a traçar a personalidade das pessoas que iria conhecer, a visualizar as fotografias fantásticas que tiraria.

Quando desliguei o telefone e contei a novidade ao colega ao meu lado, a reacção dele foi um pouco negativa, avisando-me da possibilidade de ter de viver dentro da fábrica e de algum perigo nas ruas. "Sim, claro, também me tinham dito cobras e lagartos acerca do Paquistão, e acabei por adorar a experiência", pensei eu para manter elevada a minha motivação.

No dia seguinte, tentei procurar alguma informação sobre o país. Todos os sítios que eu conhecia não tinham nada sobre a Nigéria, e em termos de livros, encontrei apenas um guia editado em todo o mundo. Tentei convencer-me que tal se devia ao facto da Nigéria não estar na moda, e não porque fosse desinteressante ou perigosa. Encomendei o livro desde Londres, e parti para férias de Natal. Durante esse tempo, estive tão ocupado a descansar, que nem sequer pensei na Nigéria.

Quando voltei, encontrei um amigo do meu pai na rua, um apaixonado por política internacional. Assim que lhe falei da minha missão seguinte, a expressão dele tornou-se demasiado séria. Ele descreveu-me coisas horriveis sobre o país, mas eu continuava a achar que não poderia confiar em alguém nunca tinha lá estado.

Mas tarde, recebi o guia* que tinha encomendado de Londres. A introdução não poderia ser sobre um país, apenas sobre um pesadelo:

"um dos locais mais caóticos e perigosos do mundo"
"é sujo e é um pesadelo ambiental"
"nada funciona"
"as infraestruturas são totalmente inadequadas"
"tem [...] corrupção a todos os níveis da sociedade"
"existe um conflito religioso e étnico contínuo que já matou mais de 10'000"
"poderia ser facilmente considerado como uma guerra civil"
"os nigerianos matam-se uns aos outros em confrontos de rua e entre gangs"
"gerida por um governo que é altamente incapaz de controlar a maior população africana"
"é simplesmente um dos locais do mundo onde é mais difícil viajar"
"desde cafés cibernéticos abertos 24 horas por dia até mortos abandonados nas ruas"
"pessoas tão pobres que têm de comer ratos e larvas"
"ainda correm rumores sobre a práctica de sacrifícios humanos"
"é terrivel e horrendo"

O livro continua com a descrição dos reais perigos do país. Desde doenças como a malária até à quase certa fraude com cartões de crédito, desde água poluída até acidentes viários a cada minuto, desde insectos que podem desenvolver-se e viver dentro do corpo humano até "rapazes de zona" drogados e armados, o livro descrevia todo o tipo de perigos de viagem como possíveis na Nigéria.

A esta altura tive de começar a admitir que afinal a Nigeria não seria um sítio assim tão bom para uma missão. Ainda assim, não poderia ser tão mau. Mas só para ter a certeza, verifiquei com os verdadeiros profissionais, o departamento de segurança da empresa:

"crime de rua violento, assalto à mão armada, carteirismo e ataques a viaturas continuam a ser frequentes por todo o país"
"grupos étnicos involvem-se frequentemente em confrontos"
"viajantes em negócios sujeitam-se a um risco elevado de ataques com armas, assalatos à mão armada, ataques a viaturas, sequestros e chantagem violenta"
"alguns estrangeiros já foram mortos em ataques a viaturas"
"policias e elementos das forças de segurança são corruptos e não têm recursos para combater o crime"
"os medicamentos são difíceis de obter"

Acabo de chegar à Nigéria. Tento agora manter o equilíbrio entre lembrar-me dos avisos para tomar precauções e esquecer-me deles para não enlouquecer! A ver vamos como corre...

*Nigeria Bradt Travel Guide